sábado, 15 de agosto de 2009

E no princípio, Deus fez a sinestesia

Uma galinha periclitante e quente de silêncio amarelo e áspero. Ao que os simbolistas empenharam movimentos sinestésicos, me permito dissertar, pois penso que àquelas relações tão previamente estabelecidas entre as sensações e entre elas mesmas aproximam-se com drasticidade do que se canta em nossos peitos. Mais temerário do que não sentir, é sê-lo na sua mais profunda efervescência, feito um comprimido ácido em copo de água. A meditação reside no fato de eu ter me descoberto, nesses últimos tempos, dolorosamente, e nulo, anestésica. E definhados os corpos e as cores; cá estou de alma rasa, como quem passeia (e se contenta) pela (e com) a superfície morna de todas as coisas. Há de ser grande para a sinestesia, há de ser forte. A propriedade do não-sentimento é, antes de tudo, triste; é feito um regime massacrante e podre em que a comida não tem jeito de comida. Deus, o que será da literatura em minhas mãos dormentes. Sou do tempo no qual a água era gostosa porque não tinha de fato gosto, hoje há um gosto de boca morta vomitante ou de algo que ainda não identifico, qualquer coisa, que não água: sou eu e minha casa de paredes sem reboque. Acredito que se alguém gozasse dentro de mim agora, eu não sentiria, feito um beijo dado por alguém que não subjugaria a vida em prol da minha. O que faço de minha carne sem graça que ignora as sensações mais ilícitas... A vida passa e se alicerçam os frívolos e os frígidos, esse é o mundo que se instaura dentro de mim e com o qual corroboro montagem. Olhos que não acrescentam, olhos nos quais não são acrescidos. Não cativo: formigante. Eu como se eu não quisesse a responsabilidade do Pequeno Príncipe. Ás vezes eu me debruço e olho lá pra baixo, pleiteando um dia certo pulo, mas não há suficiente impulso, tampouco laços que tenham sido por mim criados a ponto de serem importantes, influenciáveis e cambiáveis em motivações. A covardia da anestesia se fundamenta em não fitar com demora algo, para que se converta em especial e reação automática de excitação em minha pele. Essa é a maior das decadências, mas eu não a sinto. Mas sejamos meta-literários: o que será da literatura com gente feito eu ... A literatura dos corações suspensos. Uma tessitura parecida a que vende sua alma ao diabo e por isso a perde, a “des-sente”. É como se a minha televisão saísse do ar e não mais voltasse e de vez em quando a literatura pudesse sentir muito de relance um gosto raro de um bolo antigo em sua garganta, mas de pronto passasse e desse lugar ao largo passo de sabor de boca seca e apenas despertada, sem gosto mesmo. Reminiscências. É como se eu flertasse sem malícia com meus textos, com meus homens. Sem a passionalidade típica de quem sente excessivamente todas as coisas, Clarice jamais teria inspiração para dizê-lo e a lâmina fria encostando-se ao coração quente não poderia ser experimentada por nós em Perto do Coração Selvagem e nem perto desse meu escrito. Recomendo-lhes caros, pois, antes de tudo: que não misture sorvete com cerveja e depois que sinta a maravilhosa vibração de simplesmente sentir e que não faça parte da produção estéril de qualquer matéria. Envolvam-se orgasticamente e com tamanha emocionalidade de modo a morrer por suas causas, que as comam e as arrotem. A literatura só virá a tocar, se tocante. Como em Brás Cubas, há uma lacuna em mim e isso é tudo e isso não se deseja ao próximo, não se recomenda um vazio que enche e que empalidece, um vazio que mata e que empobrece o espírito. Se a poesia transcende, esse estômago sôfrego que em mim trago, des-transcende. Um vazio sobre o qual escrevo, mas não me satisfaz, pois assim como um livro só existe se lido, uma literatura só existe, se sentida...

2 comentários:

  1. ok, ainda que não tivesse seu nome e descrição ai acima, saberia que é vc, entendi patavinas!

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  2. Dificuldades de compreensão, Grá?! rsrs.. brincadeiras a parte, flávia, eu estou aqui para compartilhar com você as impressões que me visitam a partir do seu texto. Recordo-me das vezes em que sentia-me coisificar pela anestesia que vez ou outra nos sobressalta, ao que no mesmo momento questiono-me sobre o que seria melhor, a anestesia ou a sinestesia? Penso que a sinestesia é a única capaz de captar a totalidade do verbo poético, e talvez essa peculiaridade faz com que eu prefira sentir a não sentir; mas, com toda a consciência de que, se sentir excessivamente, por vezes é gozar em excesso, em outras é sofrer com prolixidade..

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