quinta-feira, 10 de setembro de 2009

O dilúvio de todos nós

À minha vida se escreve instigada por grande desgraça beirando à outra maior. E é na noite da chuva de Deus em que podemos sentir “a lâmina fria encostando-se ao coração quente”. Chuva é feito uma coisa quebrando de dentro da gente, um fenômeno de dentro do estômago comido. Há de desmoronar-se sobre nossos corpos, mas seremos nós os primeiros responsáveis a se atribuir as tragédias. É de dentro da gente. Deus! Sinto os pulsos vibrarem, temo que seja vida novamente a brotar. Saudemo-nos, pois estou de volta em grande estilo; Schopenhauer ficou na porta de minhas relações, Schopenhauer não serve. Houve um dilúvio, e dos olhos anestésicos partimos para os furiosos. Há épocas em que as decisões são um erro intempestivo até se converterem em assertiva irreversível. Não há mais jeito, simplesmente não fará mais sentido: a escolha de Sartre já fora lançada, não seremos autorizados pela Filosofia a voltarmos no tempo. Será impossível, feito as hipóteses, feito as probabilidades; são o tipo de coisa que não existem até existirem. Aí, as agulhadas no coração serão cada pingo da chuva de dentro da gente. Em nosso dilúvio individual, Jesus se afogou, e eu sobrevivi em drasticidade. Esses escritos são ainda sobre o que verdadeiramente importa, sobre a que fim nos destinamos os medíocres. Em razão de uma incisiva não-resposta. Essa literatura é surgente daqueles dias em que se quer ir para um lugar bom que não existe, um lugar de fora da gente, queremos ir para um lugar em que nós não estejamos. Deus! Eu não fui capaz de me deixar ser amada e não há lugar para tanta agonia. Um ser humano que não fora amado. Um ser humano desumano na etimologia mais genuína da palavra. Não haverá perdão para quem se deixou manifestar seus piores posicionamentos. Seremos torturados por cada não-sentimento de nós arrancado. A chuva nos queimará e viveremos para sempre em nossos corpos, em nossos psicotrópicos, bipolaridades, psicodelias e toda ordem de síndrome noticiada. A enchente de dentro da gente.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

A janela dos bipolares

O destino dos que existimos (existirmos, a que será que se destina?), mais do que uma sintática polêmica, é minha literatura de meditação mais corrente. Perguntemo-nos, pois, a cada um de nós e a nós mesmos a que será que nos destinamos em nossa miudez. Até que uma rebelião de inutilidades pelas quais somos constantemente motivados comece a borbulhar e nosso coração morra em morte de pura consciência. Até que nos matemos em tanta realidade. Mas afinal, Platão não quis ficar nas sombras da caverna, e nós, mais platônicos do que sabemos ser, quereremos? A que será que nos destinaremos? Foi no Baudelaire que ouvi em Caminhante Noturno, dos Mutantes que o evento e o sujeito discursivo consolidaram-se escritos ruivos, inquietantes. É como se houvesse uma conspiração de felinos em mim e eu necessitasse de expurgá-los, socializá-los. De dentro de mim, eles comem as cabeças uns dos outros: é o apocalipse, é o texto que nasce, é a meta. A que demônios cultuaremos legitimamente nossa pequenez? Para que estúpidos acontecimentos realizaremos rituais? Quem serão as pessoas de quem deveramos nos afastar? Pois elas tratarão, como que em tarefa santa, de abaixarem com drasticidade a nossa felicidade tão auto-sugestionável. O que não saberemos pequenos da vida? Aliás, o que sei um pouco é que a Schopenhauer só se seguem, quando estritamente solitários, ate um “não – outro”, pois inclusive “você não aqui” dói, uma ausência dói como se fosse uma presença. Como dói uma ausência, uma coisa que nem é, nem está, dói como se matasse. “Você não aqui” dilacera. Os afagos que não virão avassalam. São as relações em sua patética fervura. Dispensemo-nas com mesma fervura (ou não, provavelmente não). Qual será o grau de nossas “desinteligências”, qual serão suas categorizações? Pra onde iremos todos com nossos insignificantes ares pitorescos. Seu grau reside na nossa irresistível humanidade de humanos e nessa ânsia em dedicarmo-nos extremadamente ao que(m) quer que seja, e ao olharmos para trás sem que haja nada ou ninguém que houvesse sido fruto direto de nossa devoção, morremos; indignados, surpresos, “desinteligentes”, inábeis. É o dia de minhas literaturas. O dia das literaturas mais humanas. É quando a morte se achega na beira da janela alta, mas feito um engasgo na garganta, o pulo fica no ar dos desencorajosos ou desencorajados. Poucos sabem, mas é nesse viés de minha recém descoberta bipolaridade que muitos se matam. Ao invés de pular, eu escrevo. Ao invés de morrer, eu morro também.

sábado, 22 de agosto de 2009

O latido

O coração batia. De quando em quando, eles achavam que isso alcançasse o tamanho do céu e que a qualquer instante ele pudesse parar de bater-se; afinal, que força seria suficiente para desmistificá-los? Eram, de todo, amor e contra tal não perdurariam interpelações das mais eloquentes. A verdade é que o amor surgira do mesmo lugar do canto da cigarra: não se sabe onde, nem como, nem por que e nem a quê, só se sabe se legítimo. Houve um dia em que se propuseram a se apaixonar, ali, com seus olhos parados neles mesmos e com mãos que não conseguiam parar de se tocar; enfim, não houvera autoridade capaz de desatá-los. Ambos se amavam com a mesma cumplicidade de seus afagos e com o mesmo drama de uma fobia de que algo não se desse em todo o amor do mundo neles percebido. Eles por eles mesmos já se bastavam. Começavam, e terminavam, e não se terminavam em braços, pernas, suspiros e amores. Protagonizavam tão impreteríveis laços que perigavam um passional grave lugar-comum para a história. A poesia, a verdadeira poesia, estava em seus peitos jamais saírem de seus abraços e de seus sentires jamais se desvincularem. O contrato mais profundo fora selado. Havia segredos que só eles partilhavam, havia contextos só por eles vividos; ninguém mais no mundo todo e em todas as épocas o faria igual e com tanta eternidade já implicada. Aquilo tudo era caso de morte certa. Por ela, que não tocassem nele; por ele, que não tocassem nela. Por ela, que a matassem por ele, se necessário o fosse; por ele, que o matassem por ela, se necessário o fosse. Estar ali era a decisão de se quererem indubitavelmente, era amor à margem do apesar dos pesares; mas o que iriam fazer deles? Umas vezes não sabiam onde pôr as mãos, certos da imensa capacidade de se magoarem e de aquilo não voltar a sua literariedade de amor. Os braços dados, de carnes jamais capazes de se soltarem, carregando a linha tênue de tudo por um triz, pois era extremo amor. Carnes que se descobriam mais dependentes e mais mordidas de ciúmes e mais corrompidas e mais parecidas com a outra carne. Uma sensação balbuciantemente forte percorria seus corações desde a hora em que acordavam até irem se dormir. Era um desejo de estarem para sempre juntos naquele intervalo. Era cálido como as horas, depois do passar de uns relógios, eram cada vez mais incisivas, mais certeiras, mais amor. Não, não podiam se arrancar um do outro, feito parte de seu todo. Mais do que uma presença, eles assim assim seriam encerrados neles mesmos e passariam a se integrarem em suas feições até que a morte chegasse, até que a morte os desvinculassem. E mesmo que não estivessem mais juntos, não se passaria um dia em que lá não estivessem; dentro deles, eles. Relatara-se então, a cura para os eternos desalentos: era amor e disso não se desprenderiam tão debilmente e com tão poucos argumentos. Eles se precisavam tamanhamente e aquilo lhes queimava, mas era tudo. A tal ponto de, às vezes, se descobrirem eles sendo outros, outras soluções; para que tudo fosse um pouco menos abalável, um pouco menos vulnerável, um pouco menos tão difícil; mas se isso acontecesse, não, eles não seriam mais eles, eles não se completariam, eles se perderiam de um ao outro até se perderem deles mesmos. Sua união era o trabalho mais bem-feito de Deus em suas vidas, se se deixassem, aquilo seria o fim da história. Seriam dois corpos andando com toda a tristeza do mundo junta, os corações mais doídos sobre os quais já se noticiaram. Por que não se pensa em outros se não eles. Não, o coração não bateria.

Do amante ao amado, o amor

No tempo em que eu amava, o meu espírito era alimentado por uma forte convicção de humanidade, permitia-me, pois, a genuinidade das fraquezas humanas e suas vicissitudes. Trata-se, pois, não de vincular-me ao objeto de minha posse e de meus cuidados, mas de amar o veículo pelo qual me permito possuí-lo ou tencioná-lo: o amor. Eu amo o amor e todos os seus processos de passionalidade. Depois de tudo o que há depois disso, eu murcho constantemente feito uma pele de velho. Antigamente, quando ainda havia uma névoa de sentimento em mim, e que se desintegrara tão descontroladamente ao meu controle, meti-me a dissertar sobre aquilo a que chamei instância amorosa por mim observada em duas literaturas de autorias queridas: Clarice (a Lispector) e Marina (a Colasanti), nos seus contos Amor e Na funda escuridão. Tarefa de inspiração também clariciana, quando, de vida amorosa e familiar desnorteada, escreve os contos de Laços de Família. E eu, do lado de cá das mediocridades literárias escrevo de amor e sob a formação discursiva de uma comprometedora primeira pessoa do singular da língua portuguesa, ora, convenhamos que toda despersonalização haverá de ter limites. E nesses meus tempos de tragédia profunda, o fiz sem nenhuma propriedade de amante. A lembrança mais imediata de minhas inspirações primeiras para esse trabalho reside nos recorrentes contatos de minha leitura com os escritos de Padre Antonio Vieira. No decorrer de minha vida, os seus Sermões me foram disponibilizados, da mesma maneira que pude depreendê-los sob o olhar de diferentes maturidades, na medida em que o tempo impreterivelmente passava. Fato é que, especialmente o Sermão do Mandato corrobora com as minhas meditações, no sentido de haver sido a primeira literatura a me convencer na magnitude do amor de Jesus Cristo, justamente por eu me achar em um lugar de extrema incompreensão e de incapaz desprendimento no que concerne ao amor. A sapiência de Jesus irá contracorrente à ignorância dos homens, à minha ignorância. Padre Vieira elenca alguns componentes indispensáveis para a plenitude das relações entre as pessoas e sobre os quais devemos recair um conhecimento perfeito: quem ama; a si mesmo, a quem se ama, o amor e o fim daquele que ama. Jesus o fez e nenhum de nós o faria, daí a nossa pequenez em não sermos o filho de Deus. O Sermão do Mandato está para a minha vida, tal como o Mito da Caverna está para Platão; atuou como se a mim fosse desvelada uma resposta para uma pergunta que já se consagrava engessada: Jesus amou e pronto. É nesse momento que as relações entre sofrimento e conhecimento apresentam-se mais sensíveis, mais árduas, quanto mais se sabe mais se sofre, pois, me encontrei incapaz de amar ou incapaz de acreditar que alguém o possa em sua totalidade. Dessa maneira, creio que nos é possível, a nós que não Jesus Cristo, amarmos perfeitos em alguns aspectos, não em todos, amarmos em todos os aspectos, mas imperfeitos: um amor que se desdobra em múltiplos amores, categorizam-se e não são mais amores. Na oportunidade de escrever sobre o amor nos contos, a instância amorosa é um bocado de instâncias. É tudo aquilo que permeia a travessia que vai desde o objeto amante ao objeto de sua posse, incluindo ambos e tudo o que os caracteriza. Assim, cada amor haverá de ser unificado como o tempo que não volta, será inquestionável em sua diferença, será inexplicável e de futuro duvidoso, será legítimo em suas limitações e será um amor fragmentado do amor de Cristo. A nós não bastará amar e pronto, já que irremediavelmente dotados daquilo que inicialmente chamei de humanidade, falharemos em nossa incompletude e mataremos Cristo por todos os dias de nossa vida e mais uma vez, quando deturpamos o amor que Ele veio nos ensinar: eis a crucificação.

O rato que rói: a função da literatura

Fruto de insônia; as literaturas mais fervorosas. Os amigos mais profundos, eu não os escolhi, eles surgiram. As paixões mais pulsantes, eu não as procurei. Pensemos em uma espécie de rato comendo o coração da literatura. É como se o roído ecoasse no ofício do escritor e ele se pusesse a trabalhar. Literatura é lapidação mais sensibilidade, ou sensibilidade mais lapidação. Aquilo a que Octavio Paz atribui à poesia, a consagração do instante é exatamente a sua razão de ser. Os signos rumo à significação são uma instância mínima de socialização do universo paralelo que se ficcionaliza e se permite em literatura. As letras sempre configurarão um traço de ruptura, uma travessia do antes ao depois, do evento à formação do sujeito. Nada de “desimportante” se permitirá nesse rato que rói; o rato só roerá coisas sublimes. A literatura faz acontecer outro plano de acontecimentos o qual desconhecemos ou legitimamos. Trata-se de expressão, e não de representação. Sob vários nomes e nos quais confio copiosamente, a lida com a literariedade própria a certas escritas, manifestam-se os processos de sua ascensão, para mim, essas crenças funcionam como se jamais houvessem de ser abaladas ou suplantadas por outras verdades, embora aceite que por outras sejam futuramente acrescidas; a possibilidade de Kierkegaard, a escolha de Sartre, o evento de Badiou, a significação de Peirce; enfim, o poder de atravessar um acontecimento a outro, de modo que o outro se permita a investidura de profunda impreteribilidade de existência. Assim, toda a criação verdadeiramente literária atuará como divisão de águas. A Literatura é um instrumento através do qual nos oportunizamos a contracorrência ao pragmatismo de nossas relações atuais, se não se escreve, se morre, é o que diz Clarice em uma de suas entrevistas que, por vezes circula na TV Cultura. Deve de haver morrido e por nós ainda estar caminhando muitos espíritos vazios e pragmáticos. As histórias acontecem, as histórias nunca pararam de acontecer, pois existem (resistem) dentro da historicidade em que existem todas as coisas; a “labuta” com as palavras, as captam: eis a consagração que outrora mencionei. Literatura subverte o sujeito de seu senso comum e pragmático, a escrita é um transporte de meu corpo a um corpo outro. É como se em uma despedida, eu dissesse ter guardado o meu amor para alguém, e para que daqui a pouco eu pudesse amar essa pessoa; essa instância é a literatura.

sábado, 15 de agosto de 2009

E no princípio, Deus fez a sinestesia

Uma galinha periclitante e quente de silêncio amarelo e áspero. Ao que os simbolistas empenharam movimentos sinestésicos, me permito dissertar, pois penso que àquelas relações tão previamente estabelecidas entre as sensações e entre elas mesmas aproximam-se com drasticidade do que se canta em nossos peitos. Mais temerário do que não sentir, é sê-lo na sua mais profunda efervescência, feito um comprimido ácido em copo de água. A meditação reside no fato de eu ter me descoberto, nesses últimos tempos, dolorosamente, e nulo, anestésica. E definhados os corpos e as cores; cá estou de alma rasa, como quem passeia (e se contenta) pela (e com) a superfície morna de todas as coisas. Há de ser grande para a sinestesia, há de ser forte. A propriedade do não-sentimento é, antes de tudo, triste; é feito um regime massacrante e podre em que a comida não tem jeito de comida. Deus, o que será da literatura em minhas mãos dormentes. Sou do tempo no qual a água era gostosa porque não tinha de fato gosto, hoje há um gosto de boca morta vomitante ou de algo que ainda não identifico, qualquer coisa, que não água: sou eu e minha casa de paredes sem reboque. Acredito que se alguém gozasse dentro de mim agora, eu não sentiria, feito um beijo dado por alguém que não subjugaria a vida em prol da minha. O que faço de minha carne sem graça que ignora as sensações mais ilícitas... A vida passa e se alicerçam os frívolos e os frígidos, esse é o mundo que se instaura dentro de mim e com o qual corroboro montagem. Olhos que não acrescentam, olhos nos quais não são acrescidos. Não cativo: formigante. Eu como se eu não quisesse a responsabilidade do Pequeno Príncipe. Ás vezes eu me debruço e olho lá pra baixo, pleiteando um dia certo pulo, mas não há suficiente impulso, tampouco laços que tenham sido por mim criados a ponto de serem importantes, influenciáveis e cambiáveis em motivações. A covardia da anestesia se fundamenta em não fitar com demora algo, para que se converta em especial e reação automática de excitação em minha pele. Essa é a maior das decadências, mas eu não a sinto. Mas sejamos meta-literários: o que será da literatura com gente feito eu ... A literatura dos corações suspensos. Uma tessitura parecida a que vende sua alma ao diabo e por isso a perde, a “des-sente”. É como se a minha televisão saísse do ar e não mais voltasse e de vez em quando a literatura pudesse sentir muito de relance um gosto raro de um bolo antigo em sua garganta, mas de pronto passasse e desse lugar ao largo passo de sabor de boca seca e apenas despertada, sem gosto mesmo. Reminiscências. É como se eu flertasse sem malícia com meus textos, com meus homens. Sem a passionalidade típica de quem sente excessivamente todas as coisas, Clarice jamais teria inspiração para dizê-lo e a lâmina fria encostando-se ao coração quente não poderia ser experimentada por nós em Perto do Coração Selvagem e nem perto desse meu escrito. Recomendo-lhes caros, pois, antes de tudo: que não misture sorvete com cerveja e depois que sinta a maravilhosa vibração de simplesmente sentir e que não faça parte da produção estéril de qualquer matéria. Envolvam-se orgasticamente e com tamanha emocionalidade de modo a morrer por suas causas, que as comam e as arrotem. A literatura só virá a tocar, se tocante. Como em Brás Cubas, há uma lacuna em mim e isso é tudo e isso não se deseja ao próximo, não se recomenda um vazio que enche e que empalidece, um vazio que mata e que empobrece o espírito. Se a poesia transcende, esse estômago sôfrego que em mim trago, des-transcende. Um vazio sobre o qual escrevo, mas não me satisfaz, pois assim como um livro só existe se lido, uma literatura só existe, se sentida...